segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

pai nosso de cinzas

quando o pai morreu um deus morreu em mim. o universo dos meus sentidos foram inundados por uma dor solitária e vazia de vontade. não havia o deus porque não havia o pai.o luto, que não chega a termo, esvanece a imagem do pai, assim o deus também tarda a vir, já não é real, já não há. não se deve dizer descrença, apenas insensibilidade.a dor se dilui pelos dias mas ainda estou solitária e tenho um espaço na alma onde nada cabe.na ausência física do pai se institui a ausência relacional de um deus pai – onde estará meu pai agora? – já não existe, já existiu, não mais agora. o deus já existiu, não mais agora.o pai, ou aquilo que ele foi, guardou-se numa caixa de madeira, uma caixa feia colocada sob a terra. não posso ouvi-lo, não posso falar com ele, a sua face gravada na minha memória vai se turvando. noites há, noites muitas, que sonho com o pai, vivo! temendo perder a lembrança do seu rosto,  me esforço em lembrar da voz, dos seus trejeitos, seu cheiro, sua risada, seus gritos, me esforço e temo perder essa memória, como se essa outra perda representasse um esquecimento de mim mesma, não encontrar o pai é perder-me, já não saber quem ou porquê sou. miro o espelho e persigo em meu rosto o reflexo do pai. quero re-conhecer-mer. quero saber quem sou, para que sou e de que matéria sou feita.o pai está longe, absolutamente irreal, sem substância, sem existência.a orfandade é uma  tristeza! não há esperança. tornei-me rígida, desconfiada. a orfandade é uma prato de migalhas secas, um grande quarto frio com paredes altas e sem chão. janelas que se batem ao vento lembrando as horas que somem. sonolenta deambulo por este quarto para que não se perca da minha memória a imagem do deus e temo perdê-la infinitamente. o pai nunca mais voltará.