nasceu,
no tempo das luzes, um projeto de mim, a massa reconhecida agora corpo
inaugurava-se em vísceras visíveis; amostragem necessária e suficiente à
elucidação de todos os males e afastamento de feitiçarias. a cabeça guardava a
alma e era o lugar digno da coroa. naqueles dias nascíamos estes homens
que agora estamos e nunca mais haveríamos de deixar de sê-los, não deixar
morrê-los. por certo levaríamos o estandarte sempre adiante.
há
séculos passados, revistos e imaginados, traçamos as linhas sobre as quais
produzimos nossa própria biografia. éramos homens. que é o homem? cem dias se
passaram entre um bilhão de anos.
cem
dias se passaram e eu fui fabricada artesanalmente quando acordados das trevas
visamos narcisos a face humana. carrego acima dos membros a digna cabeça, o
instrumento que nos elevaria acima da natureza e nos daria a verdade. eu sou,
portanto, um bem maior que as feras, as ervas e pestes ou as rochas que
recebem as ondas do mar e não reagem, eu sou um homem! um projeto de mim
nasceu. era o oitavo dia.
depois,
os dias passados, o corpo dado era conhecido, medido; sabiam tudo. (nestes
dias a alma - se há - evacua-se nalgum espaço imaginário). este corpo não é
oferecido é violado. violamo-nos com mútua permissão, embora não soubessemos do ato nem do consentimento. nos deixamos conduzir - e o nome
desta sombra nem chega a ser cegueira.
ainda
que eu não permitisse que meu corpo fosse mostrado, sem saber eles observavam
aquilo tudo que podia existir por debaixo da pele e cada segundo da matéria
nomeada corpo era detalhado em inumeráveis listas de consulta. tudo agora eu
sei de mim quando sangro, durmo, cuspo, levito. invasões em nome da santa fé
conhecedora, aquela que nos livrou da morte, da dor, do frio e de toda sorte de
feitiçarias.
com
as palavras que foram inventadas, aramos campos inteiros com sementes aromáticas
e sedutoras. este jardim será sempre necessário entre nós e para sempre
necessárias as palavras que dele brotam. um dia minha carne será alimento para
seus vermes, mas as palavras serão as mesmas. o corpo exposto, o
palavrário discursório explicativo, ser homem era ser isto, de um modo
funcionante. e era magnífico que eu soubesse.
nossos
desejos desfilando sob holofotes e todos nós deambulávamos tão
exaustos que já não nos dávamos ao pulsar do corpo em ânsia de jorro. a vida
era concreta demais para algo de extasiada expressão. o espasmo era vapor
que não cabia. por isso todas as manhãs passamos a ser acordados antes que
o dia fosse, para então darmos reinicio ao concerto de nossa gloriosa conquista
de sermos humanidade.
mas
esta coisa que, como certeza de ser, em mim se enraizou não era de mim nascida
nem em mim existida como que por sempre sem início. tudo foi invenção! e
o mundo que me fizeram ver, a coisa que aprendi a entender que eu era
irrevogavelmente constituída, num mundo inevitável, este predestinado
resultante dos outros dias dos homens vividos a muito antes de mim, tudo era
vaidade da cabeça que guardava o espírito e eu estava sem uma porta para
arriscar o salto. pois quando foi que me tornei humano? isto seria
substância que eu pudesse declarar sobre eu mesma? quanto mais sabia de mim
mais me distanciava. algum dia chegaria a visar o que é a coisa homem?
eu
não procedia bem aos mecanismos de ser gente.
e assim,
da anamnese à diagnose meu relato toma forma e os protocolos vigentes
prescrevem a eternidade, eu contudo vejo o fim. ei de morrer de muito ter
vivido depois de gasto o corpo prolongado no tempo e oprimido no espaço, corpo
eficiente, botolizado, reificado, avançado, desoncolizado, vitalizado, ei de
morrer depois de muito ter vivido e gasto o corpo e me cansado de ser este
homem.
no
ano vinte e sete mil do rei sem fé e sem cor nos tornamos especialistas
na aniquilação de nós mesmos e o espírito passeava pela face da terra e do
abismo.
2 comentários:
Eis que o caderno está reaberto, e os segredos tornam a revelar-se... Coincidência? Narcisos, em seus caminhos individuais, por vezes se encontram!
Bons encontros, estes aqui!
Postar um comentário