quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

memórias de humanidade [gênesis]

nasceu, no tempo das luzes, um projeto de mim, a massa reconhecida agora corpo inaugurava-se em vísceras visíveis; amostragem necessária e suficiente à elucidação de todos os males e afastamento de feitiçarias. a cabeça guardava a alma e era o lugar digno da coroa. naqueles dias nascíamos estes homens que agora estamos e nunca mais haveríamos de deixar de sê-los, não deixar morrê-los. por certo levaríamos o estandarte sempre adiante. 
há séculos passados, revistos e imaginados, traçamos as linhas sobre as quais produzimos nossa própria biografia. éramos homens. que é o homem? cem dias se passaram entre um bilhão de anos.
cem dias se passaram e eu fui fabricada artesanalmente quando acordados das trevas visamos narcisos a face humana. carrego acima dos membros a digna cabeça, o instrumento que nos elevaria acima da natureza e nos daria a verdade. eu sou, portanto, um bem maior que as feras, as ervas e pestes ou as rochas que recebem as ondas do mar e não reagem, eu sou um homem! um projeto de mim nasceu. era o oitavo dia.
depois, os dias passados, o corpo dado era conhecido, medido; sabiam tudo. (nestes dias a alma - se há - evacua-se nalgum espaço imaginário). este corpo não é oferecido é violado. violamo-nos com mútua permissão, embora não soubessemos do ato nem do consentimento. nos deixamos conduzir - e o nome desta sombra nem chega a ser cegueira. 
ainda que eu não permitisse que meu corpo fosse mostrado, sem saber eles observavam aquilo tudo que podia existir por debaixo da pele e cada segundo da matéria nomeada corpo era detalhado em inumeráveis listas de consulta.  tudo agora eu sei de mim quando sangro, durmo, cuspo, levito. invasões em nome da santa fé conhecedora, aquela que nos livrou da morte, da dor, do frio e de toda sorte de feitiçarias.
com as palavras que foram inventadas, aramos campos inteiros com sementes aromáticas e sedutoras. este jardim será sempre necessário entre nós e para sempre necessárias as palavras que dele brotam. um dia minha carne será alimento para seus vermes, mas as palavras serão as mesmas. o corpo exposto, o palavrário discursório explicativo, ser homem era ser isto, de um modo funcionante. e era magnífico que eu soubesse.
nossos desejos desfilando sob holofotes e todos nós deambulávamos tão exaustos que já não nos dávamos ao pulsar do corpo em ânsia de jorro. a vida era concreta demais para algo de extasiada expressão. o espasmo era vapor que não cabia. por isso todas as manhãs passamos a ser acordados antes que o dia fosse, para então darmos reinicio ao concerto de nossa gloriosa conquista de sermos humanidade.
mas esta coisa que, como certeza de ser, em mim se enraizou não era de mim nascida nem em mim existida como que por sempre sem início. tudo foi invenção! e o mundo que me fizeram ver, a coisa que aprendi a entender que eu era irrevogavelmente constituída, num mundo inevitável, este predestinado resultante dos outros dias dos homens vividos a muito antes de mim, tudo era vaidade da cabeça que guardava o espírito e eu estava sem uma porta para arriscar o salto. pois quando foi que me tornei humano? isto seria substância que eu pudesse declarar sobre eu mesma? quanto mais sabia de mim mais me distanciava. algum dia chegaria a visar o que é a coisa homem?
eu não procedia bem aos mecanismos de ser gente.
e assim, da anamnese à diagnose meu relato toma forma e os protocolos vigentes prescrevem a eternidade, eu contudo vejo o fim. ei de morrer de muito ter vivido depois de gasto o corpo prolongado no tempo e oprimido no espaço, corpo eficiente, botolizado, reificado, avançado, desoncolizado, vitalizado, ei de morrer depois de muito ter vivido e gasto o corpo e me cansado de ser este homem.
no ano vinte e sete mil do rei sem fé e sem cor nos tornamos especialistas na aniquilação de nós mesmos e o espírito passeava pela face da terra e do abismo.
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quarta-feira, 14 de maio de 2014

pausa


deixarei que os escritos durmam
nas gavetas
nos meus bolsos
na ponta da pena
que repousem
no silêncio
nas lentes dos meus óculos
nos dedos cruzados de minhas mãos

as palavras pedem pausa

as palavras pedem:
escuta!

kll guimarães

sábado, 3 de maio de 2014

conto de nadas

[era uma vez três. uma maria de alice, a segunda maria de marta e a outra maria de si. um dia maria de alice comprou um barco e nunca mais se aportou. depois do fato, maria de marta, toma remédios para dormir todas as noites, após secar a pia da louça lavada, seca e guardada. por fim maria de si, porque ficou sem dinheiro, arranjou um emprego de boa remuneração e depois de alguns meses aceitou esta felicidade doce e auto-sustentável. 
após separadas todas elas, eu que fiquei sem ter o quê saí para fazer as unhas.]

e felizes vivemos todos...para sempre.


quarta-feira, 23 de abril de 2014

piolhos

o cheiro do vinagre morno que embebido no algodão a mãe passava, na minha cabeça apenas, pois menino não pega piolho, tem cabelo curto, e esfregava no cucuruto para funcionar melhor, ardia nos olhos e nas narinas. mas o cheiro do vinagre morno me remete aos oitos anos de idade que eu existia numa década que se foi e numa vida que era cheia de vida e que só tinha fome, sede, sono, dor de barriga, medo de escuro, coceira, vontade e alegria.
a vida era sentida, era existida, mas eu não sabia que sentia a vida, não sabia que existia, eu não sabia nada! só tinha a alegria e a satisfação de comer, dormir, coçar, brincar, e viver sem tempo.
naquela época, o desejo sem saber que desejava, era de alcançar o dia seguinte para fazer tudo outra vez, tudo igual do mesmo jeito, os mesmos desenhos na tv, as mesmas brincadeiras, o mesmo lanche comido na pia de mármore bem branquinha que a mãe alvejava com cloro; acontecimentos que eram bons justamente porque eram iguais, e o igual eram todas as coisas que ansiávamos porque traziam satisfação e eram esperadas.
naquele tempo, sem saber-se tempo, eu não perguntava o que era felicidade, eu não perguntava se era feliz: eu era, eu não elucubrava, vivia apenas. e esta vida apesar do vinagre morno era boa, como céu em fim de tarde, como água fresca, como cheiro de bolo assando.
não sei quando foi que a infância acabou, em que tarde das férias de julho, em que copo de leite com café, apenas sei que restou o cheiro do vinagre a me fazer lembrar os dias bons que alimentam quem hoje sou, mesmo que agora me furte a pergunta sobre o que é a felicidade, entre outras tantas mais que tive não sei porquê razão necessidade de perguntar.
havia o sobrado amarelo e a enorme cozinha, a tv em cores, a rua de paralelepípedos, os formigueiros na calçada, o saquinho de leite tipo c e o lanche comido na pia de mármore às sextas-feiras, dia de faxina, as crises de asma, a bandeja com seis danones, três para mim, três para meu irmão, uma vez por mês.
depois a mãe cortava meu cabelo a channel, pois assim ficava mais fácil retirar as lêndeas, tinha também o barulho da latinha amarela de neocid, um pó branco e venenoso que a mãe usava para matar os piolhos, e abafava a cabeça com um pano, o pó era eficiente ou os bichos morriam de asfixia, matava tudo, quase mata as crianças meu deus!
eu tinha que passar a tarde com a cabeça no colo da mãe, enquanto ela, com suas longas unhas vermelhas tirava lêndeas, aquilo ia dando um sono... eu cochilava.
os dias daquela vida se resumiam a estes eventos: a infestação dos piolhos, o leite com café, três danones e tantas outras singelas e irrefletidas coisas, vividas com significado de vida boa, segura e feliz, pois sempre houveram o lanche na pia, os desenhos na tv e piolhos. e este ciclo ao invés de tédio e angústia dava suporte de esperança, de alegria re-vivida.
a vida era tudo e somente isto, sem que a gente se desse conta de que estava crescendo, porque se a gente entendesse estas coisas que entendemos agora, não lembraríamos do que agora me lembro.
vieram habitar minha cabeça, não mais piolhos, agora ando tendo idéias, idéias umas que coçam e fervem na mente da gente feito piolhos. é isto: ser adulto e ter consciência e medo, e um buraco. estranho... por mais que me esforce, já não gosto tanto de danone, embora o café com leite ainda seja meu ritual preferido, mesmo sem pia de mármore e sem infância. cresci... e não faço a  idéia do que seja isto, só sei de uma falta e de uma vontade, e do esforço de achar ser possível esperar o dia de amanhã para descer até o quintal e brincar de cabelos channel e a cabeça limpinha, sem nenhum piolho a me dar coceiras.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

primeiro de novembro


os órfãos desvestiram seus casacos 
nús reconhecíamos a dor sem espaço
janelas há dias fechadas 
o tempo ensinando o costume da falta 
silêncios abreviados 
olhos secando lençóis lavados 
a terra vazia.