sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

uns dias

é preciso viver muitos dias para se ter a sensação de que ajuntou algo a que damos o nome de vida. e de repente numa madrugada qualquer, depois de dias vividos, você se dá conta de que não há substância alguma, apenas uma impressão presente que se aconchega nos dias que foram e nos que virão, e que se você ficar atento, talvez ela te diga que tipo de homem és, e que tipo de vida tens.
eu, se resumi-se a minha ao que ajuntei ultimamente, diria que tive uma vida de carne e alma, uma vida impregnada de vida, uma extensa vida, posso pensar deste modo porque ruminei meu desassossego e tive nisto meus momentos mais férteis, acreditando mesmo ser um privilégio esta náusea de minha alma e o saber-se doente de si. um dia enxerguei que haviam os outros no meu existir, então, admirei os homens e mulheres ao meu redor, e tive amizade com a sua existência. tomei proveito das horas fúteis dando-me ao lúdico, ao encontro de sorrisos como num baile da infância resgatada.
doei-me em tudo, com verdade e por vontade, assumindo, pelo arrebatamento de que fui tomada, o risco da incerteza, o risco das vozes contrárias e o risco da queda. gozei das cores, formas, luzes, sombras, dos aromas, das texturas, dos calores, dos sabores e dos sons, todos os sons, até o inacreditável silêncio e o som ruidoso de minha própria voz a me dizer por dentro, assim permiti que meus sentidos fossem tomados por esta realidade que me cerca, tendo de quando em quando a epifania da vida, enfim eu a percebia no corpo então. o sofrimento, mastiguei, degluti, ruminei, digeri, por resignação? não. apenas porque tive a consciência de que também isto significava vida e nalguns intervalos tive um assombro de paz.
assim, se fossem os últimos, a parte de se reconhecer um feliz, pois há muito não é disto que se trata, diria que os dias que ajuntei me deram uma vida muito boa, sem nada que se estenda pelo tempo, pelo espaço, pelas existências, apenas tive a minha, apenas uma boa, uma que viveu em mim, uma apenas e só.
K.Guimarães.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

minha vida

tenho uma vida calma, vou a poucas festas, tenho poucos amigos, raramente visito quem quer que seja e também não recebo visitas. quando posso leio, quando posso durmo. falo pouco pela falta do que dizer ou pela falta de quem me ouça. assisto alguns filmes, e acho suas histórias, as histórias dos filmes que vejo, parecidas com minha vida, aquela que acontece dentro de mim. faço refeições corriqueiras, pelo desejo que não tenho tido dos sabores, só me interessa a possibilidade da boa companhia. visto-me a maneira que mais me diverte, quando se trata dos sapatos, escolho os que me podem levar a muitos lugares. demais hábitos meus são previsíveis, embora inconstantes.
tenho uma vida simples, faço coisas comuns e cotidianas, as vezes tento escrever, mas no geral são só coisas confusas e sem importância, passo mais a viver os dias no cumprimento de minhas obrigações e até aprendi a considerá-las interessantes, quando no fundo sei que não são. isto também aprendi: conviver com a vontade e a necessidade que se misturam, sabendo que só tenho a fazer o que tenho que fazer. caminho deste modo entre as gentes no mundo. já sei sorrir cordialmente, já sei guardar comigo minha mais sincera opinião a respeito das coisas, consigo esperar sem agonia pelo que há de ser (tenho cultivado a des-esperança), e pratico muito o oficio de dizer as palavras dando-lhes a devida intenção do que de fato quero dizer, este é o exercício que mais aprecio na vida, gosto das palavras, tenho admiração e quero a amizade delas, mas nisto também sou complacente, ainda não faço o seu bom uso, não sempre! me encontro, em muitos momentos, incapaz de escolher uma entre outras, desconheço várias delas, evito o quanto posso outras tantas e chego mesmo a admitir o silêncio quando, com assombro, descubro não haverem ainda palavras que digam o que minha voz anseia dizer.
tenho uma vida nostálgica, pois como muitos, guardo carinhosamente as lembranças da infância, dias de escola, chuvas, brincadeiras, doces, machucados, primos, natais. também conto algumas minhas histórias, que em sua maioria sem tornaram melhores; ao recordarmos o passado nada mais fazemos senão recriá-lo, e assim o pintamos com as cores que desejamos, de modo que em geral, a imagem de agora apesar de embaçada é mais colorida. chegará o dia, quem sabe, que terei vários arco-íris com palavras, serão eles minhas memórias.
enfim, tenho uma vida. guardo meu luto, tenho meus sonhos, reconheço minhas paixões e sinto saudade...ainda que me doam os ombros e que minhas pálpebras estejam cansadas, assim como minhas mãos, entre as horas e as semanas rabisco esta vida. faço drama, confesso! é que em alguns momentos perco a noção da maturidade, faço dramas escandalosos até, quando perco também a noção da decência ou da delicadeza, e de vez em quando choro dissimulada, porque na maioria das vezes choro dilaceradamente e sozinha, são de fato os dias todos. guardo dentro de mim o peso de que o mundo seja este mistério, com o aperto que sinto no peito por tanta fome e pela falta de sentido. tento ignorar a consciência de que não há resposta e a insistente pergunta: isto tudo que vejo, toco, sinto, isto tudo que me atinge, tudo que gozo, o que me dói, as pessoas que conheço, a vida que passa, tudo isto...de que se trata afinal? de quê?
k.guimarães, janeiro 2009, hoje é sábado, estou hibernando.

prevaricação

prevaricação: v.int.1. faltar ao dever de seu cargo, por interesse ou má-fé.

acontece que misturei tudo, os filmes com a comida, as poesias com as horas de trabalho e as melodias com a vida toda. choveu ontem e ainda há de chover outro tanto, de modo que estou desanimada, seja talvez a falta de alguns cafés, cafés da querida companhia dos amigos que tenho...uma pausa para a prosa nossa. chove e vem-me a aflição, portanto me distraio com as canções e os absurdos da insanidade orbitando minha mente e vêm ter comigo idéias. tenho pensado nisto às vezes e volto a pensar enquanto chove: aquilo que me alimenta é também o que me consome, contudo, haverá acaso algum lugar para o qual me recolha e me ausente de mim? quando a chuva cessa e dá-se-nos o sol, são os dias em que me sinto melhor, e nestes dias, de vez em quando, me vem um prazer sorrateiro na vida desapegada, admito: gosto da prevaricação! dias de meu olhar travesso, este sorriso no canto dos lábios apertados. “ah! que prazer não cumprir um dever” ah! que saboroso festejo o faz-de-conta, a moleza, a indolência e a lassidão. nestes dias possuo a vida como quem possui um segredo e escondido brinca com ele. nestes dias a vida é enorme, há bastante sol e reino em mim, sou extensa na vastidão de não usar-me ao devido, para antes, me dar ao que couber de maior graça, conquanto esteja além das preocupações dos homens vagantes que rumam sem significado, embora crédulos desta vida irremediável que se estampa na testa franzida. quanto a mim, deixo a insensatez assumir seu posto, danço, comemoro, sou coro, sou platéia, virá depois disto a chuva, as ruas todas serão de novo lavadas, a febre cederá e eu voltarei a brincar de realidade, olhando de quando em quando pelas janelas e esperando um outro sol.
k.guimarães, num dia de verão, 2008.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Aula de Teatro

Hoje eu amanheci de um jeito estranho... Bom dia Andréia!
Estamos em roda, leituras... Denise, Gabi e eu. Todas as imagens me levam para outro lugar. Os textos de cada um me envolvem numa nostalgia de um tempo/espaço que não foi meu mas que agora observo com se estivesse do outro lado da vidraça.
Chegando mais perto, fechamos a roda, ombro a ombro! Massagear o companheiro. É muito bom poder dividir este cuidado entre nós! E desfaz-se a roda.
O corpo: mãos
Nesta pesquisa foi essencial a participação tão entregue da minha parceira. Ela me deu a oportunidade de criar uma sintonia tal, que o braço dela era a extensão do meu corpo, eu me fundia ao dela.
Passamos daí a estudar o esqueleto humano; e você entrou por um caminho que me fez embarcar na aventura que é conhecer o corpo, o homem, como ele nasce, o que ele é. Tua figura à minha frente falando de ancestralidade era toda fascínio e energia, e eu do lado de cá, boca aberta, olhos grandes, quase ouvia som saindo dos meus poros, e queria ouvir mais, conhecer mais, entender mais, “As impressões antropologias arquivadas em nosso DNA”. Prazer, medo, impulso, tudo tem muito mais do que você pôde dizer, mais do que pudemos entender. E assim eu me vejo de outra forma. Sou um corpo! Tudo que há sobre mim está registrado nos meus ossos, na minha carne. Como foi que você falou? Tudo que eu fui, tudo que queria ser e não fui, tudo que ainda serei, enquanto eu for e mesmo quando eu não for mais. E vamos à minha coluna, primeira vértebra, mais duas, mais três e mais. Estou entrando em mim, mas o conflito da mente, sentidos e corpo são constantes. Depois vem, o coração acelerado, a febre, a gana, o cansaço... e a luta para dominar a exaustão, para dizer, ordenar a este corpo: “Vai agora, eu preciso de você agora! Eu quero você presente e inteiro.” Você queria que eu dissesse algo? Mas eu diria o quê? Meus pensamentos estão agora presos dentro de mim e não são palavras, são sensações. E os meus olhos, e os meus ouvidos, a língua, os dentes...
... Hoje eu acordei de um modo diferente.
E justo eu apresentar o protocolo sensorial, eu que estou o tempo todo ligada com minhas idéias, e com a explicação de tudo, socialmente, culturalmente, mente blá, blá, blá. Mais tarde tem o Carlos e tem a cartas do tarô, tem uma pergunta, tem uma resposta e uma atmosfera de sagrado. Sinto uma tensão, que negócio é este agora? Sinto o pulsar de uma veia do pescoço, tem algo aqui, que a disritmia do Jailson deu sinal naquela hora, quase não posso respirar. Todas as cartas, uma a uma foram surgindo, e foi excitante conhece-las e arriscar, o Carlos instiga e vem a descoberta, mas não a resposta, que a resposta a gente tem que buscar dentro de nós, porque ela já existe lá. Mistério, o jogo, a vida, feminino, masculino, a criança, a morte, a lua, o sol, a força. E finalmente tem o palco, que a resposta vem na cena, e agora eu sinto desespero: “como é que eu vou fazer isto?”
No fim do dia, nem meu corpo, nem minha cabeça agüentam mais, preciso de um tempo para digerir isto tudo. Mas há um desejo grande de voltar aqui, e fazer mais e sorver de vocês, Andréia, Carlos, essa paixão, esse brilho nos olhos, essa dignidade.
Ontem eu fui para a casa diferente.
Hoje eu acordei de um modo estranho
Hoje o dia foi muito!
Protocolo da aula de 14/05/05 - Registro sensorial por Kelly Guimarães

Pertences de viagem

não sei lidar muito bem com distâncias espaciais, é difícil deixar para trás os lugares, me chateio com a idéia de estar entre o aqui e o lá, fico aterrorizada sem razão e sem medida. agora, aqui neste quarto, sei que a minha vida está lá sem mim, e que além dos pertences que trouxe na mala, trouxe junto a consciência de todas as coisas e o desalento de não saber o fim de cada uma delas. seria bom saber beneficiar-me da imprevisão e da novidade de cada dia por onde se arrasta a possibilidade de qualquer existência, mas ao contrário disto fico ruminando pensamentos insolúveis. que espécie de alma tenho comigo? e que merda de mal-estar é este? nauseante. sufocado. não tenho lugar dentro de mim e nas pausas de minha vidazinha fico anotando bobagens como estas nos extratos de banco que encontro na bolsa... por que vivo nesta prisão já que sei que é uma prisão? talvez porque igualmente saiba que não há saída, todo lugar é prisão, e quanto mais revolvo a terra, mais afundo exausta no nada. tenho saudade de minha casa, que casa? admiro a paisagem das serras daqui, há beleza em tudo quanto há de verde nelas, é então momento de limpar os olhos com estas imagens, concedendo à minha alma alguma serenidade, para logo depois, bem logo depois, devolver-me às inúteis questões que me fazem sentir o nó na garganta. eis o caso do inevitável, posso aprender a deixar os lugares, posso aprender a conviver com a ausência de mim mesma nestes lugares, mas não posso deixar-me para trás como quem separou um livro e o esqueceu em cima da cama, ou como quem se convenceu de que seis pares de sapato era muita coisa e decidiu levar apenas três. me levo sempre comigo, não importa quanto espaço tenha na mala, me levo sempre comigo.
k.guimarães, dias de minas gerais em dezembro/2008.

Contigência

ainda que pensada, mensurada, a vida é inevitavelmente apresentada a nós a cada instante uma novidade. que o sol nasça amanhã é apenas fé. nada há de inquestionavelmente certo que me garanta a existência do dia de amanhã, pra mim ou pra quem quer que seja. estou deste lado da rua e vejo o lado de lá, penso como seria, idealizo, abstraio, desejo e atravesso aquela rua, mas o que há do outro lado que agora é o lado de cá pra mim? o que eu não sabia, o que eu não esperava, aquilo que projetei não aconteceu. a vida é no viver, não no pensar. não que não seja favorável cogitarmos o realizar de nossa vida, mas tudo é contingência, detalhes, imprevisões. nada acontece no tempo e no espaço exatamente como as imagens da minha alma. assim existimos nós, em algum ponto deste imenso e intangível universo de possibilidades.
kelly guimarães, junho/2008.