quarta-feira, 23 de abril de 2014

piolhos

o cheiro do vinagre morno que embebido no algodão a mãe passava, na minha cabeça apenas, pois menino não pega piolho, tem cabelo curto, e esfregava no cucuruto para funcionar melhor, ardia nos olhos e nas narinas. mas o cheiro do vinagre morno me remete aos oitos anos de idade que eu existia numa década que se foi e numa vida que era cheia de vida e que só tinha fome, sede, sono, dor de barriga, medo de escuro, coceira, vontade e alegria.
a vida era sentida, era existida, mas eu não sabia que sentia a vida, não sabia que existia, eu não sabia nada! só tinha a alegria e a satisfação de comer, dormir, coçar, brincar, e viver sem tempo.
naquela época, o desejo sem saber que desejava, era de alcançar o dia seguinte para fazer tudo outra vez, tudo igual do mesmo jeito, os mesmos desenhos na tv, as mesmas brincadeiras, o mesmo lanche comido na pia de mármore bem branquinha que a mãe alvejava com cloro; acontecimentos que eram bons justamente porque eram iguais, e o igual eram todas as coisas que ansiávamos porque traziam satisfação e eram esperadas.
naquele tempo, sem saber-se tempo, eu não perguntava o que era felicidade, eu não perguntava se era feliz: eu era, eu não elucubrava, vivia apenas. e esta vida apesar do vinagre morno era boa, como céu em fim de tarde, como água fresca, como cheiro de bolo assando.
não sei quando foi que a infância acabou, em que tarde das férias de julho, em que copo de leite com café, apenas sei que restou o cheiro do vinagre a me fazer lembrar os dias bons que alimentam quem hoje sou, mesmo que agora me furte a pergunta sobre o que é a felicidade, entre outras tantas mais que tive não sei porquê razão necessidade de perguntar.
havia o sobrado amarelo e a enorme cozinha, a tv em cores, a rua de paralelepípedos, os formigueiros na calçada, o saquinho de leite tipo c e o lanche comido na pia de mármore às sextas-feiras, dia de faxina, as crises de asma, a bandeja com seis danones, três para mim, três para meu irmão, uma vez por mês.
depois a mãe cortava meu cabelo a channel, pois assim ficava mais fácil retirar as lêndeas, tinha também o barulho da latinha amarela de neocid, um pó branco e venenoso que a mãe usava para matar os piolhos, e abafava a cabeça com um pano, o pó era eficiente ou os bichos morriam de asfixia, matava tudo, quase mata as crianças meu deus!
eu tinha que passar a tarde com a cabeça no colo da mãe, enquanto ela, com suas longas unhas vermelhas tirava lêndeas, aquilo ia dando um sono... eu cochilava.
os dias daquela vida se resumiam a estes eventos: a infestação dos piolhos, o leite com café, três danones e tantas outras singelas e irrefletidas coisas, vividas com significado de vida boa, segura e feliz, pois sempre houveram o lanche na pia, os desenhos na tv e piolhos. e este ciclo ao invés de tédio e angústia dava suporte de esperança, de alegria re-vivida.
a vida era tudo e somente isto, sem que a gente se desse conta de que estava crescendo, porque se a gente entendesse estas coisas que entendemos agora, não lembraríamos do que agora me lembro.
vieram habitar minha cabeça, não mais piolhos, agora ando tendo idéias, idéias umas que coçam e fervem na mente da gente feito piolhos. é isto: ser adulto e ter consciência e medo, e um buraco. estranho... por mais que me esforce, já não gosto tanto de danone, embora o café com leite ainda seja meu ritual preferido, mesmo sem pia de mármore e sem infância. cresci... e não faço a  idéia do que seja isto, só sei de uma falta e de uma vontade, e do esforço de achar ser possível esperar o dia de amanhã para descer até o quintal e brincar de cabelos channel e a cabeça limpinha, sem nenhum piolho a me dar coceiras.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

primeiro de novembro


os órfãos desvestiram seus casacos 
nús reconhecíamos a dor sem espaço
janelas há dias fechadas 
o tempo ensinando o costume da falta 
silêncios abreviados 
olhos secando lençóis lavados 
a terra vazia.