segunda-feira, 23 de junho de 2008

primeiros escritos, diário de luto

era sábado e havia sol, mas o anaximandro, o peixe da sofia, amanheceu boiando no aquário, contamos pra ela no dia seguinte, ela colocou as mãozinhas sobre o rosto e chorou com os ombros. lhe expliquei, ao modo torto de quem nunca lidou com isto antes, "ele foi morar com deus", era só o que eu podia dizer... era só um peixe.
25 de novembro foi domingo. não falo com meu irmão a meses, ele não liga, eu não ligo, e assim ficamos. [desde quando fiquei solta assim na vida? meus pais longe, meu irmão longe... minhas raízes, onde as plantei? de que espécie de ser-humano me fiz enquanto minha infância foi ficando lá atrás, lá longe onde meus pais e meu irmão deram de se meter... no longe, pois eu que não segui caminho adiante era quem tinha ficado sem os seus, eles eram os que foram embora, os que me deixaram.] quando atendi o telefone fiquei animada, "oi meu irmão!", então se desenrolou um conversa confusa destas que sempre temi, pois dia ou outro haveria de acontecer: ele me dava notícia, notícia mal contada de um acidente no sítio, o mundo pára... o que foi que aconteceu? lá longe? meu pai infartado numa UTI, era o que eu sabia no fim do dia e por entre a noite. e o jeito tolo de quem nunca lidou com aquilo: está tudo bem ou ficará, o pai aguenta, ele recupera, afinal era só um infarto.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Izabel Bárbara

Meus pais são de Minas Gerais. Da casa de minha mãe não tenho lembrança, as que tenho são da casa de meu pai; as memórias e as imagens que me acompanham pela vida.
Lembro-me que íamos a Minas cerca de uma vez por ano, para visitar tios, primos e minha melhor lembrança é da casa da vovó Izabel. Ela morava no "Alto", sua casa era feita de madeira, paredes e assoalho, tinha o primeiro cômodo com uma janela ao lado da porta de entrada e duas na parede da frente, uma porta lateral dava para uma espécie de sala onde só havia um baú em que a vó guardava lençóis e toalhas de mesa que ela nunca usava e nesta sala haviam outras portas que davam para os quartos. Uma sala imensa! Uma casa imensa! No quarto onde costumávamos ficar tinha uma cama e um móvel com gavetas, a cama ficava encostada na parede, e a parede tinha um buraco na madeira, eu espiava lá embaixo, pois a casa havia sido construída numa descida, então o lado oposto à entrada principal era mais alto, parecia que eu ia cair lá embaixo ou que bicho ia entrar, tinha medo e fazia força pra dormir; então de manhã quando espiava pelo tal do buraquinho, miudinho coitado! eu via o dia com sol, galinhas, porcos, e uma figueira...
Chegávamos pela estrada de terra, quase intrafegável, não era freqüente subirem carros para lá, naquela época carros não eram freqüentes, o mato tomava conta, daí que o meu pai, com seu fusca azul, abria passagem. Havia várias porteiras pelo caminho, e finalmente avistávamos o curral, a casa, e lá atrás, as mangueiras e a bica. Lá atrás, depois das mangueiras ficava a bica, para mim o lugar melhor do mundo. Como podia ser que toda aquela água, o dia todo, corresse sem parar! Pois que na minha inocência eu pensava: Ninguém nunca fecha esta torneira?! E lá eu passava o dia, enxotando porco e galinha, cavoucando terra, pegando cinzas do fogão e brincando com o que a vó generosamente me emprestava ou o que houvesse, caçarola, caldeirão, prato de esmalte, colher, gravetos, folhas, sementes, grãos.
Ao fim do dia eu tomava banho numa bacia de alumínio posta bem no meio da sala imensa, a água, por causa do sabonete, ficava esbranquiçada e cheirosa e dava pra sentir uma areiazinha assentada no fundo da bacia. Era bom! Água morna e uma caneca para derrama-la em minhas costas.
À noite nos reuníamos no primeiro cômodo, onde tinha num canto o fogão de lenha, noutro, umas prateleiras pra guardar pratos, panelas, bacias, uma mesa com o filtro de barro em cima, e aquela bandeja cheia de copos emborcados junto da garrafa de café, pois em Minas toda casa que se preze tem uma garrafa de café, mesmo a da vó, naquele fim de mundo, ou no começo dele. Tinha também uma cristaleira onde a vó guardava a louça mais bonita e o pilão ao lado da porta, havia bancos de madeira e algumas cadeiras velhas.
Ficávamos ali à luz de lamparinas, que era a coisa melhor do mundo, a luz nunca acabava e eu ficava hipnotizada pela chama e pela fumacinha que saía dela. Já bem escuro da noite chegavam meu tio, às vezes a tia, e os primos. Como eles conseguiam caminhar pelo meio do mato e da escuridão?
Conversavam não me lembro bem sobre o que, pois obviamente, eu estava divagando com a chama da lamparina, mas se há o que me lembro, falavam da situação do país, do preço das coisas, do preço das terras e de gente que tinha morrido naquele ano. Gostavam também de falar comigo e meu irmão, pra ouvir nosso sotaque e as idéias que saiam da cabeça de crianças nascidas e criadas em São Paulo.
Lembro-me dos cabelos longos da minha vó, feitos em coque atrás da cabeça, do rosto encovado do meu avó, a testa larga, a barba branca; lembro do tio, sua figura muito magra, de cócoras, enrolando cigarro de palha. Contavam "causos", e o ritmo da conversa era ás vezes muito lento, pausado, e nós podíamos debulhar milho e beber café preto com queijo curado ou biscoito de polvilho.
A luz era pouca, a conversa muita por muita saudade, tinha cheiro de mato, tinha as brasas no fogão de lenha, caneca de esmalte raspando no dente, doce de figo, sopa de macarrão furado no meio, na casa da minha avó tinha uma bica, tramela, porteira, espora, rapadura, lamparina, barranco, bosta de vaca, bicho de pé, boneca de espiga, tinha roupa de cama que cheirava a sabão e sol, tinha chão de terra pisada, barulho de bicho, muita estrela no céu. E tinha a vó, o vô, e a criança que eu era.
kelly guimarães, Jun/2005