quinta-feira, 1 de outubro de 2009

sem título

um carta encontrada numa esquina do banco de uma praça entre o concreto... e o abstrato!
ceres, ser amado,
os existentes deste planeta, os humanos, são estranhamente contraditórios, se dizem usurpados, traídos, não amados. curiosamente, porém, na primeira oportunidade é isto mesmo que fazem ao outro, salvo se o outro for então um seu amigo (se bem que às vezes, por razões obscuras, até aos amigos o mal se faz). o caso é que se o injusto de então não me toma por um dos seus, o que faço? como eles dizem: vou à caça com um gato? talvez como um lobo.
sempre esqueço, aqui os fatos nem são tão simples, nem são tão leves. um mundo antagônico!
pessoas não são sonho, mas dura realidade, são consciência, racionalidade e contudo imprevisão e passion.
me descuidei ceres, pensei fosse de outro modo, agora sigo com a sapiencia do mal e com desejo de outros atos e conforme alguns: não perder a fé, é preciso, senão sucumbo.
esta é a razão que me faz querer com agonia os humanos com os quais me encantei, embora esteja atenta à porrada e ao esporro. que seja quando for. cuidemos de nós, cuidemos de não embrutecer e, quando vierem dias de esgotamento de mundo nos esgueiremos até a fenda, até o silêncio, à solidão.
esteja bem, ceres ser amigo e haja com cuidado ao atravessar a porta.
de afeto e de sol
bruma

sábado, 26 de setembro de 2009

nada de nada III

tenho que lhes pedir licença para atender ao justo
licença ao do justo para providenciar o certo
ao do certo para servir ao patrão e
ao patrão agradeço, sem nunca lhe pedir licença

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

nada de nada

sou de muito amor, também sou de muita alegria, apenas não sei o que fazer com as mãos, tampouco com as idéias.
o humano em mim se faz a maneira do imprevisível impulso, é num universo inexistente que realizo quem sou, mas por favor, eu não estou enlouquecida (ainda).
em meu coração cabe tudo(...)"

sábado, 12 de setembro de 2009

pohemorragia

plasma
o corpo é hábito.
há tanto habito este
já me habituei

plaquetas
enlutar-se
algo morre em mim, comigo, no meu mundo
e luto

linfócitos
eu
objeto estranho e deslocado
silencia
dentro

protrombinas
são os outros.
eu não há. encontro
o outro que só há em
quando eu
não-eu
negação
ausência
o que se apartou de mim
eu não preenchido
e
fr a gme nt aç a ~ o

sal
há tempos não lavo meus sapatos
estou arrastando comigo todos os caminhos

água
acho que quero maluquecer
o crime não compensa
a sanidade também não

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

lugares

os lugares me oprimem ou serão as pessoas?
há lugares frios, nada aquece, outros patológicos cor de úmido
há lugares em que meu corpo não se assenta
sempre um desconforto
sempre uma demora
luzes que confundem e espaços, vagos espaços
há pessoas que ocupam os lugares
amplos.
há pessoas que ocupam todo o vago
meus ouvidos
minha mente
prefiro os espaços vagos
não-amplos
porque se me olha interrogando eu desconfio
se insinua uma promessa eu acredito
se enraivecido passa por mim me deixa acuada
risonho me irrita
calado constrange
um desconcerto
uma espera
serão os lugares?
eu quero pessoa.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

extinção

outro dia um funcionário de meu marido por educação e cordialidade me estendeu uma mão de boa noite, eu nunca tinha pensado nisto, mas então... meus deus! olhei o moço enquanto meu sorriso abobado erguia uma mão cúmplice de minha maldade, eu pensava: "meu rapaz por onde telefone-maçaneta-canetas alheias andou esta sua mão?" sorriso abobado, "boa noite!". depois, meu braço direito pendia ao lado do meu corpo, tendo pena de minha mão envergonhada, esta mão que a mim mesma se tornou imprópria, não coçar olhos, não cutucar orifícios, não comer cutículas... e onde estaria meu frasquinho de álcool, porque neurose pouca é bobagem e para mim as coisas e as pessoas estão impregnadas de infinitos seres micro-invisíveis e letais, mas as vezes também pergunto, será? pior é aquela senhora que não mais compartilha quaisquer objetos entre os de sua casa, afinal, "nunca se sabe, cê entende?" entendo. entendo sim.

entendo que o meu próximo é o outro. um que invade meu território, se ocupando do mesmo ar que eu, fazendo bailar no espaço suas partículas que se juntam com as minhas, mas nós não. nós nos distanciamos. nos repelimos. o outro me ameaça. eu também a ele.

há momentos que nostalgiando a história penso nas catátrofes épicas que devastaram uma civilização inteira, pestes, holocausto, inquisição. homens e mulheres escreveram a história com seu próprio pulmão, seu sobrenome, sua resignação e foram extintos. só restou a história. não eu não quero, não me interessa. não há poesia. é gripe de bicho porco, frango, zebra, gafanhoto.

vantagem terão os laboratórios. os caras de avental branco; baseados em evidências de hipóteses comprovadas, os caras aplicarão suas pesquisas e novas drogas surgirão, vacinas: micro-invisíveis agora não letais, mas cambaleantes, entrando por direito e permissão em nosso corpo para brigar com a matéria e por fim nos fazerem mais saudáveis. será? e sim, venderemos, ainda, muitas máscaras e muito álcool em gel. abençoado seja o mercado das oportunidades!

não estou alarmada, estou em pânico! pus os pés numa clínica outro dia e tive um prelúdio do apocalipse. todos os funcionários usavam máscaras verde-centro-cirúrgico. olhava a moça do atendimento se esforçando em ser compreendida quando falava comigo, ela respirava seu próprio hálito enquanto o elástico marcava seu rosto. o outro. eu. aquele que ameaça quando estende a mão, aquele que não pode chegar tão perto e que se oferece um pedaço de seu chocolate está afrontando um de nós, indecentemente.

mas eis o outro lado de todas as coisas: chegaremos, um a um, ao dia último. após centenas de mortes por agravo da síndrome gripal, noticiadas todos os dias - são proveitosas as tragédias, fazem-nos ter assunto, ocupação, idéias, amplia o mercado, gera emprego e desvia nossa atenção - pergunto: e os homens tantos? o morto nosso de cada dia, no trânsito, numa mesa de cirurgia, de tiro, nosso morto de fome, morto de tristeza... de um jeito ou de outro, morrem todos os dias, por epidemias ou só porque já se viveu demais. há vários modos de se chegar ao inevitável.

seja o que for, um dia, aquela coisa em nós que deambulava, que se aborrecia, que amava, que acreditou em deus, que teve filhos, que fabricou vacinas, que era muito gorda, que era muito séria, que era bem feliz, que ganhou medalhas, que sonhou sempre e se entupiu de mundo, aquela coisa que dizia com os olhos, que dizia e amava, esta coisa já não estará mais aqui.

e, no derradeiro instante, restarão apenas os invisíveis letais devoradores dos humanos, para depois também eles chegarem ao fim, quando nada mais restará. a involução! mas as baratas... será?

o caso é que minhas mãos estão ressecadas de tanto serem lavadas e desejo muito que, em nome do que quer que seja, esta epidemia seja controlada e a gente durma em paz achando que o mundo está em ordem. assim, eu poderei sem neurose sorrir e apertar confortavelmente a mão de um que me foi gentil, e finalmente, deixarei de invertar pensamentos e comportamentos maníacos porque tenho medo da extinção!

sábado, 1 de agosto de 2009

...um rio

viver é um rio.
!
não, eu não estou refeita. seguimos respirando vivo, mesmo sem condição. é que esta jornada me toma sempre de uma obrigação: quero entender.
mas eu não entendo nada! as coisas, antes que eu possa alcançá-las, mudam de cor, mudam a textura, mudam de lugar, de nome.
vagueio meu próprio coração (acho que é a primeira vez que uso esta palavra em meus escritos, veja só! que curioso...), e escrevo para me salvar do escuro, é o que faço com as palavras: me salvo.
então decido contar porque necessito encontrar uma paz, porque necessito aliviar-me das imagens que tomaram meus dias e para talvez significar, mesmo sem entender, pois afinal eu sei: não se pode entender, não tudo. e mesmo não importa, nada é definitivo neste nosso entendimento das coisas.
me recolho porque do lado de fora de mim não há.
converso com as palavras, sentada do lado de fora, onde há um silêncio dentro, um que me invade e me serena.
há a chuva que me desconsola. serão longos os dias. espero que a primavera venha antes mesmo que o inverno acabe.
...
viver é rio, a gente escoa, sem condição.
já é agosto!

segunda-feira, 6 de julho de 2009

uma leitura e a vida

apenas um relato com duas partes. nenhuma descoberta, nada incrível, apenas duas coisas de que me dei conta e sobre as quais quero falar.
parte um: a leitura...finalmente terminei de ler “a menina que roubava livros”, a parte de qualquer crítica literária sobre a obra (sobre isto podemos conversar outro dia, você me paga um café) outras coisas me ocorreram, outras coisas fizeram sentido para mim.
estou querendo falar sobre o ato de ler, não vou desenrolar uma teoria do conhecimento ou sequer uma filosofia da linguagem, eu não teria ferramenta para isto e nem é o que desejo, apenas fico pensando em como tudo isto é possível, como tudo acontece: que eu seja capaz de significar códigos impressos num papel, e que ao fazê-lo, imagens são projetadas na minha alma. isto é rico! nem consigo manifestar o quanto me sinto maravilhada.
quando leio, um filme se passa na minha mente, sensações são geradas, e são em certo grau vivas, são latentes.
quando leio me liberto do cotidiano, habito outro lugar, compartilho outras possibilidades, expando a mente. construo-me humano. haveria alguma metafísica nisto? o papel, imagens em mim, sensações, uma história, qualquer história, pensamentos, conexões, o mundo, no papel, em mim.
numa civilização de letrados a gente não se dá conta do que representa tal capacidade. que eu possa ler é impressionante! o que seja isto é espantoso e infinito...
a parte dois é a vida. é que iniciei a leitura deste livro no ano passado e, porque a vida exigiu de mim outras e tantas providências mais urgentes, abandonei a leitura antes de chegar a umas cinqüenta páginas. meses depois, exausta intelectualmente, exausta do trabalho e de todo resto daquilo que a vida me cercava, voltei a leitura como que para distrair-me do esgotamento. comecei lendo todas as noites uma meia dúzia de páginas e aos poucos a leitura foi novamente abandonada, submersa pela vida exigente e exaustiva, não cheguei nem a metade do livro. agora, de férias da faculdade, me dediquei a tarefa e pude experimentar a boa ansiedade para saber o fim da história.
de qualquer maneira foi a oportunidade de me distanciar dos meus dias profundos e cansados e de me conceder este prazer singelo. daí que fiquei pensando de quantas coisas na vida deixei de fazer, por preguiça, por apatia, e de como a rotina me absorve e me engana, não há nada de necessário no cotidiano, apenas hábitos incoerentes a que me conformei. penso também que devo despertar para outra coisa, algo que não sei exatamente o que é, e que não chega a ser só subjetividade, algo que intuitivamente já devo ter experimentado um dia, voltar ao caderno de escrita com mais freqüência, por exemplo, cultivar um senso de humor menos ácido e mais grato, cozinhar, fazer planos, lembrei-me de que em algum lugar da minha história eu gostava de desenhar, gostava de caixinhas de música, andava descalça e dançava enlouquecidamente, por horas, no meio da sala enquanto a faxina esperava, ela podia esperar, aquele meu ímpeto de extravasar, não!
pois bem, após um começo de ano difícil, ainda esgotada, um pouco mais lúcida, porém menos entusiasmada, considerando estas coisas e a doce alegria que sinto na alma apenas por terminar de ler um livro, embora não tendo vencido a terrível questão, embora não estando convencida de que haja sentido, finalmente e após dias, posso dizer e quero dizer porque hoje é concreto em mim, porque faz sentido mesmo que seja só por hoje: é bom estar viva! alguns dos que me lêem sabem bem do que estou falando. tal é o caso: necessito habitar meus dias, estou viva, e careço de estar atenta ao fato, há muito que fazer. estou viva e isto é bom!
k.guimarães

a fala sobre o corpo

“a fala sobre o corpo é uma fala-no-corpo sobre o corpo....corpo prévio a todo discurso,porque o discurso é obra – poiética – do corpo-falando”(almeida, 2001).

ousemos falar do corpo. talvez possamos nos arriscar a dizer sobre ele como se fora dele existíssemos ou sendo apenas uma fala provisoriamente sem corpo.o que é um corpo afinal? um homem? como ele nasce? o que ele é? seu prazer, medo, impulso, seu realizar, sua historicidade. o caso é que ele carrega muito mais do que somos capazes de abarcar, mas importa dialogá-lo, interpretá-lo e torná-lo de dentro-fora-dentro corpo vivo, corpo presente, corpo falante.e eu sou um corpo! o que sou, fui, foram, há, está impresso em mim e manifesto em corpo. minha forma, meu gesto, meu riso, meu saber das coisas, meu perceber do mundo, meu dizer no corpo, meu dizer do mundo no corpo que fala aos outros corpos.sem pensamento possível que alcance-o, existem palavras que o indicam, no mais: intuição... poiética! o corpo é, eis o conceito, assim, meu e seu corpo são. corpo imponderável. sem linguagem possível que o defina ou que o capture, exceto a linguagem silenciosa dos corpos sendo, existindo, e no vivido dizendo o que, como, quando e porquê são.

por guimarães em abril.

sábado, 30 de maio de 2009

educação, o que é isto?

nos anos 90 iniciei os estudos no magistério e me lembro daquelas aulas introdutórias em que havíamos de nos apresentar dizendo o nome e qual a razão de termos escolhido aquele curso, éramos cerca de 40 meninas e a resposta da grande maioria, entre poucas variações era: “escolhi o magistério porque gosto de criança”, aquilo me soava um sem sentido, eu olhava contrariada as meninas-que-gostavam-de-criança, éramos uma geração pós-paquita. gostam de crianças? pois tenham filhos!!!
o caso era que eu acreditava que estava lá porque haveria de existir possibilidades para além do estereótipo da professora-tia, que eu poderia de fato contribuir com a formação de uma criança, que podia auxiliar na construção mesma do indivíduo e também cria que aqueles nobres senhores pensadores da educação, dado seus experimentos, suas tentativas, suas pesquisas e trabalho, indicariam o caminho sobre o qual eu pudesse andar e no qual pudesse encontrar os modelos e as ferramentas necessárias para esta tarefa. no meu entendimento, a educação estava para aquela interferência consciente e sistemática para construção psico/social/intelectual do ser humano. dava para produzir um homem!
pois bem, os anos se passaram, eu concluí o curso e nunca lecionei formalmente. mas então, tive filhos! e qual seria, entre tantas, minha atuação na vida deles? educá-los! finalmente eu descobria que também gostava de crianças, e que educar meus filhos implicava em ser com eles nas horas de folga, nas brincadeiras, nas compras do supermercado, numa xícara de leite antes de dormir. ocorre, contudo que a educação deles se daria com ou sem mim, mas na medida em que eu estivesse no universo de suas vidas, me cumpria, não por dever mas por desejo, vivenciá-los tanto quanto a mim mesma, para que na soma de nossas experiências educássemos uns aos outros e que isto repercutisse no mundo. agora eu cria que eu e aquilo que construía com meus filhos, e os meus filhos propriamente, podíamos reverberar nos de nosso redor, coexistindo no mundo para alcançarmos uma vida feliz, bela, talvez justa e enfim mais vivida. seja qual seja a conceituação destas coisas, fiz tudo por intuição e ainda faço, não sei mensurar se apliquei meus conhecimentos em educação, mas acredito que contribuí de modo muito para a formação deles, que isto os auxilia na vida diária, que eles são quem são também como resultado da minha presença em suas vidas, pois, mesmo intuitivamente, tenho atuado com aquele sentido de que devo isto a eles, a mim e em especial ao mundo, e com meus afetos, meus desejos e minhas crenças, minhas imperfeições, meu medo e as vezes até sem esperança: os educo.
da soma de minhas intelecções do tempo de magistério e minha experiência como mãe, resultam minhas utopias por uma vida boa, em que a educação, seja aquela que se dá na escola, seja a que ofereço a mesa com meus filhos, implica em aprender a conviver com eles enquanto aprendo sobre eu mesma, oferecendo a possibilidade da apropriação de si, para que sejamos autores na esfera de nossa própria vida e não apenas viventes entre viventes e apresentando o mundo e a consciência de que há o outro, para que sejamos existentes entre homens em quem nos reconhecemos e em quem ainda acreditamos porque são nossos iguais. o bom, o belo, o utópico.

k.guimarães - escrito de 2008, muito antes de me tornar uma estagiária no ensino médio...

segunda-feira, 13 de abril de 2009

fragmentos

a imagem é esta: estou segura as extremidades que se romperam, esforço-me para atar ambas pontas, num nó, num laço. já não estou por um fio... não há mais fio, agora já dois aos quais me agarro. mas, se soltasse uma das pontas? se soltasse todas elas e me deixasse cair? e se me deixasse cair, haveria chão para me arrebentar? haveria um para pisar firme enfim, ou é só abismo, como uma alice caíndo sempre.
...
desejo despregar-me de mim, a gente pode tirar férias de si? algo como levar a mãe já velha e cansada para passar um temporada na casa do irmão, só uns dias pra aliviar. só uns dias pra eu me aliviar de mim.
...
a significação da vida... a perda da identidade, das referências, perda da fé, do pai, de si. e em perder tanto, achar-se perdida ao ponto de esgotar todas as demais coisas, todas tantas igualmente desinteressantes, mas afundar-se alucinante em qualquer uma que aparência tenha de qualquer entusiasmo. e afundar-se abismal. depois, eu sem mim, esvaziada, dolorida e anestesiada, enquanto cada evento vai me dando a apatia necessária para que a vida esteja por hora suportável, então descubro a fenda, uma fenda no abismo, para onde me esquivo a tentar ser quem sou, não sei quem sou, ao menos daqui não preciso pensar nisto agora, só esquivar-me na fenda. sem choro, sem riso, apenas uma face abismal e insipida, olhando pela fenda de dentro do buraco, aquele abismo para onde alice vai. aqui não é quente e nem frio, nem sono, nem sonho, apenas uma penumbra no meio do dia. e quando descansar de mim, voltarei a ter fome.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

sobre a escrita

quanto a mim, escrevo pela urgente necessidade que tenho de dialogar comigo mesma...

tudo começa com um pensamento latejante concebido aparentemente involuntário no meu espírito, construído pelas impressões com as quais a vida me afetou, este pensamento, será ruminado desencadeando outros e outros, a combinação das palavras obedecerá a um ritmo que vibra dentro do entendimento, uma sonoridade exigida, necessária, pulsação que condena-me ao seu esgotamento, no que vou escavando, descendo camadas, ate que a ânsia primeira seja por inteira despejada no papel, como um parto, uma lágrima, um grito, um orgasmo, e quando já exausta pareço consumida nela, alcanço ter percorrido todo o caminho e meu trabalho se completou. chega então a vez de abandonar como que arrancando o texto de mim, permitindo que ele assuma existência para além de mim, as vezes são dias, as vezes semanas, e após idas e vindas, finalmente e não sem a sensação do inacabamento, me desprendo e fecho a porta e parto. é então como que renascidas que se encontram depois, a escritora e a mulher, e neste caminho mais uma vez tomadas pela mesma urgência, dão inicio a mais uma conversa.

K.Guimarães

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

uns dias

é preciso viver muitos dias para se ter a sensação de que ajuntou algo a que damos o nome de vida. e de repente numa madrugada qualquer, depois de dias vividos, você se dá conta de que não há substância alguma, apenas uma impressão presente que se aconchega nos dias que foram e nos que virão, e que se você ficar atento, talvez ela te diga que tipo de homem és, e que tipo de vida tens.
eu, se resumi-se a minha ao que ajuntei ultimamente, diria que tive uma vida de carne e alma, uma vida impregnada de vida, uma extensa vida, posso pensar deste modo porque ruminei meu desassossego e tive nisto meus momentos mais férteis, acreditando mesmo ser um privilégio esta náusea de minha alma e o saber-se doente de si. um dia enxerguei que haviam os outros no meu existir, então, admirei os homens e mulheres ao meu redor, e tive amizade com a sua existência. tomei proveito das horas fúteis dando-me ao lúdico, ao encontro de sorrisos como num baile da infância resgatada.
doei-me em tudo, com verdade e por vontade, assumindo, pelo arrebatamento de que fui tomada, o risco da incerteza, o risco das vozes contrárias e o risco da queda. gozei das cores, formas, luzes, sombras, dos aromas, das texturas, dos calores, dos sabores e dos sons, todos os sons, até o inacreditável silêncio e o som ruidoso de minha própria voz a me dizer por dentro, assim permiti que meus sentidos fossem tomados por esta realidade que me cerca, tendo de quando em quando a epifania da vida, enfim eu a percebia no corpo então. o sofrimento, mastiguei, degluti, ruminei, digeri, por resignação? não. apenas porque tive a consciência de que também isto significava vida e nalguns intervalos tive um assombro de paz.
assim, se fossem os últimos, a parte de se reconhecer um feliz, pois há muito não é disto que se trata, diria que os dias que ajuntei me deram uma vida muito boa, sem nada que se estenda pelo tempo, pelo espaço, pelas existências, apenas tive a minha, apenas uma boa, uma que viveu em mim, uma apenas e só.
K.Guimarães.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

minha vida

tenho uma vida calma, vou a poucas festas, tenho poucos amigos, raramente visito quem quer que seja e também não recebo visitas. quando posso leio, quando posso durmo. falo pouco pela falta do que dizer ou pela falta de quem me ouça. assisto alguns filmes, e acho suas histórias, as histórias dos filmes que vejo, parecidas com minha vida, aquela que acontece dentro de mim. faço refeições corriqueiras, pelo desejo que não tenho tido dos sabores, só me interessa a possibilidade da boa companhia. visto-me a maneira que mais me diverte, quando se trata dos sapatos, escolho os que me podem levar a muitos lugares. demais hábitos meus são previsíveis, embora inconstantes.
tenho uma vida simples, faço coisas comuns e cotidianas, as vezes tento escrever, mas no geral são só coisas confusas e sem importância, passo mais a viver os dias no cumprimento de minhas obrigações e até aprendi a considerá-las interessantes, quando no fundo sei que não são. isto também aprendi: conviver com a vontade e a necessidade que se misturam, sabendo que só tenho a fazer o que tenho que fazer. caminho deste modo entre as gentes no mundo. já sei sorrir cordialmente, já sei guardar comigo minha mais sincera opinião a respeito das coisas, consigo esperar sem agonia pelo que há de ser (tenho cultivado a des-esperança), e pratico muito o oficio de dizer as palavras dando-lhes a devida intenção do que de fato quero dizer, este é o exercício que mais aprecio na vida, gosto das palavras, tenho admiração e quero a amizade delas, mas nisto também sou complacente, ainda não faço o seu bom uso, não sempre! me encontro, em muitos momentos, incapaz de escolher uma entre outras, desconheço várias delas, evito o quanto posso outras tantas e chego mesmo a admitir o silêncio quando, com assombro, descubro não haverem ainda palavras que digam o que minha voz anseia dizer.
tenho uma vida nostálgica, pois como muitos, guardo carinhosamente as lembranças da infância, dias de escola, chuvas, brincadeiras, doces, machucados, primos, natais. também conto algumas minhas histórias, que em sua maioria sem tornaram melhores; ao recordarmos o passado nada mais fazemos senão recriá-lo, e assim o pintamos com as cores que desejamos, de modo que em geral, a imagem de agora apesar de embaçada é mais colorida. chegará o dia, quem sabe, que terei vários arco-íris com palavras, serão eles minhas memórias.
enfim, tenho uma vida. guardo meu luto, tenho meus sonhos, reconheço minhas paixões e sinto saudade...ainda que me doam os ombros e que minhas pálpebras estejam cansadas, assim como minhas mãos, entre as horas e as semanas rabisco esta vida. faço drama, confesso! é que em alguns momentos perco a noção da maturidade, faço dramas escandalosos até, quando perco também a noção da decência ou da delicadeza, e de vez em quando choro dissimulada, porque na maioria das vezes choro dilaceradamente e sozinha, são de fato os dias todos. guardo dentro de mim o peso de que o mundo seja este mistério, com o aperto que sinto no peito por tanta fome e pela falta de sentido. tento ignorar a consciência de que não há resposta e a insistente pergunta: isto tudo que vejo, toco, sinto, isto tudo que me atinge, tudo que gozo, o que me dói, as pessoas que conheço, a vida que passa, tudo isto...de que se trata afinal? de quê?
k.guimarães, janeiro 2009, hoje é sábado, estou hibernando.

prevaricação

prevaricação: v.int.1. faltar ao dever de seu cargo, por interesse ou má-fé.

acontece que misturei tudo, os filmes com a comida, as poesias com as horas de trabalho e as melodias com a vida toda. choveu ontem e ainda há de chover outro tanto, de modo que estou desanimada, seja talvez a falta de alguns cafés, cafés da querida companhia dos amigos que tenho...uma pausa para a prosa nossa. chove e vem-me a aflição, portanto me distraio com as canções e os absurdos da insanidade orbitando minha mente e vêm ter comigo idéias. tenho pensado nisto às vezes e volto a pensar enquanto chove: aquilo que me alimenta é também o que me consome, contudo, haverá acaso algum lugar para o qual me recolha e me ausente de mim? quando a chuva cessa e dá-se-nos o sol, são os dias em que me sinto melhor, e nestes dias, de vez em quando, me vem um prazer sorrateiro na vida desapegada, admito: gosto da prevaricação! dias de meu olhar travesso, este sorriso no canto dos lábios apertados. “ah! que prazer não cumprir um dever” ah! que saboroso festejo o faz-de-conta, a moleza, a indolência e a lassidão. nestes dias possuo a vida como quem possui um segredo e escondido brinca com ele. nestes dias a vida é enorme, há bastante sol e reino em mim, sou extensa na vastidão de não usar-me ao devido, para antes, me dar ao que couber de maior graça, conquanto esteja além das preocupações dos homens vagantes que rumam sem significado, embora crédulos desta vida irremediável que se estampa na testa franzida. quanto a mim, deixo a insensatez assumir seu posto, danço, comemoro, sou coro, sou platéia, virá depois disto a chuva, as ruas todas serão de novo lavadas, a febre cederá e eu voltarei a brincar de realidade, olhando de quando em quando pelas janelas e esperando um outro sol.
k.guimarães, num dia de verão, 2008.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Aula de Teatro

Hoje eu amanheci de um jeito estranho... Bom dia Andréia!
Estamos em roda, leituras... Denise, Gabi e eu. Todas as imagens me levam para outro lugar. Os textos de cada um me envolvem numa nostalgia de um tempo/espaço que não foi meu mas que agora observo com se estivesse do outro lado da vidraça.
Chegando mais perto, fechamos a roda, ombro a ombro! Massagear o companheiro. É muito bom poder dividir este cuidado entre nós! E desfaz-se a roda.
O corpo: mãos
Nesta pesquisa foi essencial a participação tão entregue da minha parceira. Ela me deu a oportunidade de criar uma sintonia tal, que o braço dela era a extensão do meu corpo, eu me fundia ao dela.
Passamos daí a estudar o esqueleto humano; e você entrou por um caminho que me fez embarcar na aventura que é conhecer o corpo, o homem, como ele nasce, o que ele é. Tua figura à minha frente falando de ancestralidade era toda fascínio e energia, e eu do lado de cá, boca aberta, olhos grandes, quase ouvia som saindo dos meus poros, e queria ouvir mais, conhecer mais, entender mais, “As impressões antropologias arquivadas em nosso DNA”. Prazer, medo, impulso, tudo tem muito mais do que você pôde dizer, mais do que pudemos entender. E assim eu me vejo de outra forma. Sou um corpo! Tudo que há sobre mim está registrado nos meus ossos, na minha carne. Como foi que você falou? Tudo que eu fui, tudo que queria ser e não fui, tudo que ainda serei, enquanto eu for e mesmo quando eu não for mais. E vamos à minha coluna, primeira vértebra, mais duas, mais três e mais. Estou entrando em mim, mas o conflito da mente, sentidos e corpo são constantes. Depois vem, o coração acelerado, a febre, a gana, o cansaço... e a luta para dominar a exaustão, para dizer, ordenar a este corpo: “Vai agora, eu preciso de você agora! Eu quero você presente e inteiro.” Você queria que eu dissesse algo? Mas eu diria o quê? Meus pensamentos estão agora presos dentro de mim e não são palavras, são sensações. E os meus olhos, e os meus ouvidos, a língua, os dentes...
... Hoje eu acordei de um modo diferente.
E justo eu apresentar o protocolo sensorial, eu que estou o tempo todo ligada com minhas idéias, e com a explicação de tudo, socialmente, culturalmente, mente blá, blá, blá. Mais tarde tem o Carlos e tem a cartas do tarô, tem uma pergunta, tem uma resposta e uma atmosfera de sagrado. Sinto uma tensão, que negócio é este agora? Sinto o pulsar de uma veia do pescoço, tem algo aqui, que a disritmia do Jailson deu sinal naquela hora, quase não posso respirar. Todas as cartas, uma a uma foram surgindo, e foi excitante conhece-las e arriscar, o Carlos instiga e vem a descoberta, mas não a resposta, que a resposta a gente tem que buscar dentro de nós, porque ela já existe lá. Mistério, o jogo, a vida, feminino, masculino, a criança, a morte, a lua, o sol, a força. E finalmente tem o palco, que a resposta vem na cena, e agora eu sinto desespero: “como é que eu vou fazer isto?”
No fim do dia, nem meu corpo, nem minha cabeça agüentam mais, preciso de um tempo para digerir isto tudo. Mas há um desejo grande de voltar aqui, e fazer mais e sorver de vocês, Andréia, Carlos, essa paixão, esse brilho nos olhos, essa dignidade.
Ontem eu fui para a casa diferente.
Hoje eu acordei de um modo estranho
Hoje o dia foi muito!
Protocolo da aula de 14/05/05 - Registro sensorial por Kelly Guimarães

Pertences de viagem

não sei lidar muito bem com distâncias espaciais, é difícil deixar para trás os lugares, me chateio com a idéia de estar entre o aqui e o lá, fico aterrorizada sem razão e sem medida. agora, aqui neste quarto, sei que a minha vida está lá sem mim, e que além dos pertences que trouxe na mala, trouxe junto a consciência de todas as coisas e o desalento de não saber o fim de cada uma delas. seria bom saber beneficiar-me da imprevisão e da novidade de cada dia por onde se arrasta a possibilidade de qualquer existência, mas ao contrário disto fico ruminando pensamentos insolúveis. que espécie de alma tenho comigo? e que merda de mal-estar é este? nauseante. sufocado. não tenho lugar dentro de mim e nas pausas de minha vidazinha fico anotando bobagens como estas nos extratos de banco que encontro na bolsa... por que vivo nesta prisão já que sei que é uma prisão? talvez porque igualmente saiba que não há saída, todo lugar é prisão, e quanto mais revolvo a terra, mais afundo exausta no nada. tenho saudade de minha casa, que casa? admiro a paisagem das serras daqui, há beleza em tudo quanto há de verde nelas, é então momento de limpar os olhos com estas imagens, concedendo à minha alma alguma serenidade, para logo depois, bem logo depois, devolver-me às inúteis questões que me fazem sentir o nó na garganta. eis o caso do inevitável, posso aprender a deixar os lugares, posso aprender a conviver com a ausência de mim mesma nestes lugares, mas não posso deixar-me para trás como quem separou um livro e o esqueceu em cima da cama, ou como quem se convenceu de que seis pares de sapato era muita coisa e decidiu levar apenas três. me levo sempre comigo, não importa quanto espaço tenha na mala, me levo sempre comigo.
k.guimarães, dias de minas gerais em dezembro/2008.

Contigência

ainda que pensada, mensurada, a vida é inevitavelmente apresentada a nós a cada instante uma novidade. que o sol nasça amanhã é apenas fé. nada há de inquestionavelmente certo que me garanta a existência do dia de amanhã, pra mim ou pra quem quer que seja. estou deste lado da rua e vejo o lado de lá, penso como seria, idealizo, abstraio, desejo e atravesso aquela rua, mas o que há do outro lado que agora é o lado de cá pra mim? o que eu não sabia, o que eu não esperava, aquilo que projetei não aconteceu. a vida é no viver, não no pensar. não que não seja favorável cogitarmos o realizar de nossa vida, mas tudo é contingência, detalhes, imprevisões. nada acontece no tempo e no espaço exatamente como as imagens da minha alma. assim existimos nós, em algum ponto deste imenso e intangível universo de possibilidades.
kelly guimarães, junho/2008.